Anatomia indígena urbana

Antes de qualquer português chegar, os índios já viviam no Brasil. Apesar de terem sido brutalmente exterminados com o tempo, boa parte deles acabou se integrando aos invasores europeus e os escravos africanos, formando “nosso povo multicolorido e miscigenado” (que lindo). E por isso mesmo, sobram lugares no país com nomes que aludem às línguas indígenas. De estados, como Amapá (fim do mundo, em tupi), Roraima (montanha trovejante, em ianomâmi), ou Paraná (rio largo, em tupi). Ou ainda centenas, milhares de cidades, como Carapicuíba (pau podre, em tupi), Maringá (peneira para pescar, em tupi) ou Cuiabá (lugar de caçar com o arpão ikuia, em bororo). Deu para reparar que boa parte dessa toponímia ao menos lembra algum aspecto do lugar batizado.

Mas é claro que em São Paulo, terra do Banco de Nomes, isso não iria acontecer.

Que tal abrir as páginas desse livro a esmo?

Que tal abrir as páginas desse livro a esmo?

Pois é, isso que você leu. Alguém pegou o livro acima (ou um similar), abriu em qualquer página e pronto: batizou-se a rua. Partindo de uma das diretrizes originais do Banco, de criar “bolsões” de ruas com a mesma temática, duas regiões da Zona Leste foram escolhidas: a Cidade A. E. Carvalho, na Penha, e a Vila Prudente, especialmente as travessas da avenida Luís Ignácio de Anhaia Mello. E vai vendo: nada faz sentido.

É corpo humano…

Mapu é cabeça

Mapu é cabeça, em tupi. Na Penha.

E o que tem dentro da Mapu? Um mapunaro - ou melhor, um crânio

E o que tem dentro da Mapu? Um mapunaro – ou melhor, um crânio

Na sua Mapu também tem 32 maxás (vulgo dentes).

Na sua Mapu também tem 32 maxás (vulgo dentes).

O Tecá dá na Maxá no mapa e no corpo. Tecá é pescoço.

O Tecá dá na Mapu no mapa e no corpo. Tecá é pescoço, em tupi.

Os maxás, por sua vez, estão presos ao maxuero - que até parece com seu nome em português: maxilar

Os maxás, por sua vez, estão presos ao maxuero – que até parece com seu nome em português: maxilar

Abra bem seu maxuero: a capiacaci vai sair.

Abra bem seu maxuero: a capiacaci vai sair. É a língua.

Sempre é bom desopilar o opiá, também conhecido como fígado

Sempre é bom desopilar o opiá, também conhecido como fígado.

Se um índio tupi lhe disser que seus buerus verdes são lindos, agradeça. São os olhos.

Se um índio tupi lhe disser que seus buerus verdes são lindos, agradeça. São os olhos.

Cooperativa Permanente de Emanação? Não, seu copereminha: é coxa, na língua dos ticunas.

Cooperativa Permanente de Emanação? Não, seu copereminha: é coxa, na língua dos ticunas.

sentimentos

Mas não arrume briga com um índio tupi: ele pode Livi com você.

Mas não arrume briga com um índio tupi: ele pode Livi com você. Livi é algo como ralhar, em tupi. A rua é mais antiga que o Banco, fica no Alto de Pinheiros.

frutas

Não, não é a tinta do cabelo da sua vó. É o nosso conhecido caju mesmo, mas na versão original.

Não, não é a tinta do cabelo da sua vó. É o nosso conhecido caju mesmo, mas na versão original. Essa é no Tatuapé.

e outras coisas em geral:

Mixira é gordura de tartaruga, que os tupis usavam para fritar.

Mixira é gordura de tartaruga, que os tupis usavam para fritar.

Se é morename, é bom.

Se é morename, é bom.

Antes de viajar, veja se sua cocá é suficiente. São provisões de viagem - e a rua, em Itaquera.

Antes de viajar, veja se sua cocá é suficiente. São provisões de viagem – e a avenida, em Itaquera.

Você pode incrementar sua cocá com tocachis: um tipo de peixe. Como você vê, fica na Vila Prudente, travessa da Anhaia Mello.

Você pode incrementar sua cocá com tocachis: um tipo de peixe. Como você vê, fica na Vila Prudente, travessa da Anhaia Mello.

Para pescar os tocachinhos, por sua vez, é imprescindível o uso da Urá: um arpão.

Para pescar os tocachi, por sua vez, é imprescindível o uso da Urá: um arpão.

Esqueci o que ia dizer. Um ticuna diria: te deu um morapena - um branco.

Esqueci o que ia dizer. Um ticuna diria: te deu um morapena – um branco. Em São Lucas.

Ai, chega, né? Um dia falo de outras. Que como você deve imaginar, são várias…

Ruas estranhas, apenas – 2

Hoje é dia de falar de mais ruas estranhas que, de tão estranhas que são, mal cabem em algum critério. Por isso inventei um: as ruas “das” coisas. Tem cada uma… Claro, aqui não vou falar de “rua das amoreiras”, “dos pinheiros” (embora nessa não tenha nenhum pinheiro plantado), etc, que a ideia já tá meio que na cara. Mas vamos lá:

I <3 TATUAPÉ S2 S2 S2

I ❤ TATUAPÉ S2 S2 S2 S2 S2

Essa ruela, travessa da rua Emílio Mallet, foi aberta nos anos 60 e foi chamada de “rua da Amizade”. Em 1990, mesma época em que a Prefeitura fez um novo levantamento de ruas repetidas ou mal-batizadas (de onde vieram as Borboletas, lembra?), ela ganhou o nome de Campeadores (que, assim como as Butterflies,  também é uma obscura obra de música erudita). Mas veja só: mesmo com o nome até “normal” o pessoal tatuapense botou os campeadores pra correr! Daí, como já existe uma travessa da Amizade no Jaçanã, resolveram o problema botando o aposto “do tatuapé”. E os campeadores?

achoooou!!!

achoooou!!!

Eles foram exilados na Vila Emília, bairro do Sacomã (zona sul). Fazendo esquina, fica a Cantiga Ingênua, outra obscurantíssima peça para piano de uma certa Adelaide Pereira da Silva.

Contrariando o que diz Galvão Bueno, a Curva é Curva mesmo, não é reta

Contrariando o que diz Galvão Bueno, a Curva é Curva mesmo, não é reta

Essa ruinha, na Vila Guilherme (ZN), tem um grande atrativo:

A curva da rua curva é mais curva que a curva da rua reta (Paulo Leminski)

A curva da rua curva é mais curva que a curva da rua reta (Paulo Leminski)

Sim, uma curva. E ponto final. Nem o Dicionário sabe explicar, mas é um alento saber que a rua curva é curva (em U, para ser mais exato).

Fica na Casa Verde (zona norte).

Fica na Casa Verde (zona norte).

E a rua da Divisa? Pode botar no mapa: ela não divide nada com lugar nenhum, pelo menos nos dias de hoje. O Dicionário também não tem explicação. Alguém sabe? Mistério…’

"Olha, quem entra aqui nessa rua é no mínimo um imbecil, mal-educado. Olha, sai daqui, tá?"

“Olha, quem entra aqui nessa rua é no mínimo um imbecil, mal-educado. Olha, sai daqui, tá?”

Não tem nada a ver com grosseria, nem com a qualidade do asfalto. Essa rua do Jaraguá (zona norte) foi agraciada pelo Banco com o nome de uma serra, na verdade “das asperezas que fica na micro-cidade gaúcha de Pinheiro Machado.

fica no Jabaquara (zona sul).

fica no Jabaquara (zona sul).

Não se encontrarão exemplares de Ouro Rublo, Grande Midas ou Picolé, muito menos A Recreativa (que é bem mais chata de fazer). As cruzadas da rua são mesmo aquelas da Idade Média. Melhor assim.

#mtosincera: essa rua é uma porcaria, não vem morar aqui não, tá? #mtofranka

#mtosincera: essa rua é uma porcaria, não vem morar aqui não, tá? #mtofranka

Quem disse que as ruas não têm sentimentos? Essa aqui fica no Jaraguá (zona norte), pertinho da Rua da Franqueza. Mas, francamente, é bem quebrada ali: ambas são vias de um conjunto habitacional da região, já bem perto da Brasilândia.

Pode ficar tranquilo, aqui não tem assalto, todo mundo fica com a porta aberta...

Pode ficar tranquilo, aqui não tem assalto, todo mundo fica com a porta aberta…

Antes fosse assim nessa ruelinha da Vila Matilde (zona leste)… na verdade, deve ter sido um positivista ou algo do gênero que loteou o bairro, já que o Bem termina na rua da Ordem e é paralela à rua Do Trabalho Da Economia.

E, como tantas, a Cordialidade fica no meio de uma quebrada, o Jardim São Luís (zona sul). Pelo street view parece ser um lugar até aprazível (pelo menos de dia…). Aliás, falando em Cordialidade…

Se tem alguém cordial aqui é o homem. O cara.

Se tem alguém cordial aqui é esse homem. O cara.

Pois é, a maneira que o Sérgio Buarque de Hollanda tentou descrever o caráter do brasileiro, nem sempre de forma positiva, sabe-se lá o motivo, batiza a ruinha da Cidade Dutra (zona sul). Muito provavelmente, foi um “jeitinho” de fazer mais uma homenagem ao escritor, que morava no Pacaembu, pertinho do estádio. Não por acaso, a praça que fica em frente à casa dele ganhou o nome de sua obra seminal, publicada em 1936:

raizesdobrasil

Quando moleque, o Chico Buarque gostava de furtar carros estacionados e dar uns rolês pelas ruas do Pacaembu, até acabar a gasolina. Tanto que ele sabe até hoje dar ligação direta. Boa parte das ruas onde Chico pilotava têm nomes de cidades do interior de São Paulo, como Itápolis e Buri, que se unem ao lado da praça. A única desalojada foi Sorocaba:

A maior de todas, como você vê pela numeração, é a Itápolis. Ela dá várias voltas até cortar o estádio do Pacaembu pelo lado direito

A maior de todas, como você vê pela numeração, é a Itápolis. Ela dá várias voltas até cortar o estádio do Pacaembu pelo lado direito

Sorocaba, aliás, nunca mais voltou a ser nome de rua (a não ser uma não-oficial no Morro Doce, quebradinha na zona norte). Já o professor Ernest Marcus, zoólogo alemão radicado no Brasil, e morto em 1968, não tomou o nome da rua por acaso. É porque ele morava lá: sua casa, aliás, era essa mesma que tem a placa pendurada… Mas se as ruas do Pacaembu, em geral, têm nomes de cidades, o contrário também acontece, a umas oito horas de distância:

Bem-vindo a Pacaembu! A cidade mais querida do Brasil tem temperatura média de 39 graus à sombra e um site bem do chambeta

Bem-vindo a Pacaembu! A cidade mais querida do Brasil tem temperatura média de 39 graus à sombra e um site oficial bem do chambeta

Essa cidadela, de apenas 12 mil habitantes, fica lá no extremo oeste do estado, mais perto do Mato Grosso do Sul do que daqui da capital. Lembro que saí um tempinho com uma menina que era da cidade vizinha (e um pouco maior), Adamantina, e ela disse que rolavam umas festinhas por lá. Na verdade, apesar de serem independentes, as cidades daquela região, como Lucélia e Lavínia acabam meio que funcionando como “bairros”, de pequenas que são (e, todas predominanemtente rurais) – é uma conurbação, como dizem os geógrafos. Boa parte delas só começou a existir porque a estrada de ferro trouxe gente para lá (história de 9 entre 10 cidades do interior de SP, cá entre nós).

Mas do que eu estava falando mesmo? Ah sim: Pacaembu, fundada em 1947, reza a lenda, tem esse nome porque, quando rolou sua emancipação de Lucélia,   os moradores começaram a brigar entre si, cada um com sua sugestão. Daí “um deputado que intermediava a conversa e tinha acabado de assistir um jogo do Corinthians no Pacaembu” (aham, naquela época ele teria levado umas 10 horas de trem pra chegar), “falou que a gritaria e a bagunça estavam parecendo a torcida no estádio”. Daí, a turma acabou gostando do nome e ficou: Pacaembu.